O internacional guineense ao
serviço do Famalicão da 2ª liga portuguesa, Ibraima Só, disse, numa entrevista
exclusiva ao Jornal “O Democrata”, que apesar da desorganização, nunca se
arrependeu de ter optado por representar a selecção nacional da Guiné-Bissau.
Porém, o médio defensivo disse que recebeu a sua primeira convocação para
representar as cores nacionais com “grande entusiasmo” e até pulou de alegria
pela ocasião.
Ibraima
Só (IS): Sim. Nasci na Guiné e foi aqui também que comecei a
jogar. Fui para Portugal aos 7 ou 8 anos de idade. Na altura, não levava nada
sério e não tinha quaisquer expectativas em termos de careira profissional.
Jogava apenas por gosto. Corria atrás da bola e gostava mais de atacar, mas
como lhe disse antes, não era nada sério.
Fui para Portugal para
estudar. O meu pai esperava por mim lá. Para mim era mais uma oportunidade de
estudar.
OD: Foi
para Portugal nos finais de 1996. Como foi a sua integração naquele país?
IS: Em
termos gerais a minha integração foi fácil. Quando cheguei, tinha que fazer
exames na escola para saber se ficaria no terceiro ano ou se ia para o segundo
ano. Mas felizmente consegui apurar e fiquei no terceiro ano, graças ao pouco
de português que aprendi cá na Guiné. Tinha um nível aceitável da leitura.
Em termos desportivos também
a integração foi boa. Lembro-me que o Marítimo foi a primeira equipa onde fui
treinar, e tive a simpatia dos colegas, da equipa técnica e dos dirigentes, mas
infelizmente não podiam inscrever-me na altura, porque não tinha documentos.
Graças ao meu pai que sempre
me mentalizou que sou africano e um emigrante e não podia iludir e me engar,
sabia que tinha que trabalhar mais que os outros pois não bastava apenas ser
bom, mas sobretudo ser muito bom e isso foi o que sempre fiz. Apesar de ser um
país que me recebeu super bem, e com muitas oportunidades, mas tenho a noção da
minha cor de pele e das minhas raízes. Sabia que devia dar muito mais de mim.
Isso foi determinante na minha integração.
Sinto-me feliz hoje por ter
conquistado o respeito dos colegas das equipas em que passei, os colegas da
escola, dos vizinhos. Isso significa que consegui conquistar o meu próprio
espaço.
OD:
Como foi o primeiro treino?
IS:
Naturalmente, não tenho uma memória bem presente do primeiro treino, mas
lembro-me que foi no Funchal, num campo onde treinava o Marítimo A, que agora é
onde joga a Equipa B do Marítimo. Lembro-me também que fiz bons amigos que até
hoje preservei. Fiz cinco anos nas camadas de formação no Marítimo. Mais tarde
encontrei-me com muitos colegas na selecção de Madeira. Ainda encontro-me com
alguns noutras equipas em que joguei. Por exemplo, quando estive na Nacional de
Madeira encontrei alguns. Tive bons amigos no Marítimo.
OD: Há
pouco disse que quando estava ainda na Guiné, não levava nada a sério… Pois
então quando é que começou a encará-lo como um desafio?
IS: Na
verdade, acho que quando cheguei a Portugal vi que as condições eram favoráveis,
então, comecei a treinar e a partir daí comecei a receber os primeiros elogios
do técnico, dos colegas. Diziam-me algo assim, “vês que tens que esforçar para
fazer sempre mais”. Acho que momentos assim influenciaram-me bastante, e
fizeram com que acreditasse mais em mim mesmo.
OD:
Sabemos que a sua posição inicial era avançado. Desde quando é que começou a
jogar como médio defensivo, a posição onde hoje joga?
IS:
Sim,
a minha posição inicial era avançado. Eu fazia de ponta de lança e médio
extremo, na qual, não só atacava bem, mas também recuperava muito bem a bola e
era forte nas bolas áreas. Daí, o treinador achou por bem adaptar-me para meio
campo, na posição 06. Também as características de passe que eu tinha também
ajudaram a minha adaptação para essa posição.
Claro que a partir dos
juvenis joguei sempre nessa posição. Acho que é natural, essa adaptação. Muitos
grandes jogadores começaram como avançados e acabaram como médios defensivos,
por exemplo Makelelé, que foi um grande jogador, antes de jogar como médio
defensivo, jogou como médio extremo.
OD:
Será que um dia chegou a pensar em desistir?
IS:
Realmente há momentos em que pensei em desistir. Alias, até hoje há momentos em
que pensamos que não vale a pena continuar. Por exemplo, no meu caso, aos 16
anos, já treinava com a equipa sénior do Nacional de Madeira, uma equipa que na
altura estava na então Taça UEFA, actual Liga Europa. Em algumas equipas, por
exemplo, passados dois ou três anos chega-se numa altura em que nem se quer o
treinador conta consigo. Ele já não te convoca e há jogos que nem sais do banco
de suplentes. Momentos assim são frustrantes, chega-se a pensar que não vale a
pena continuar.
Eu já ajudei três equipas da
terceira divisão a subirem para a segunda divisão, e ainda no ano passado fui
eleito pelos colegas da equipa como melhor médio do clube. Mas mesmo assim,
vejo colegas que tiveram menos desempenho que eu a serem levados para os clubes
da primeira liga, isso por terem bons empresários. Nem fui convocado para a
selecção Nacional. Tudo isso leva-nos a pensar em desistir, a chegar a pensar
que já não faz sentido tanto esforço e sacrifício porque não teremos
reconhecimento nenhum.
A própria família que te
apoia começa logo a desacreditar nas tuas potencialidades e diz-te, “olha é
melhor desistir e procurar outro emprego”. Porém no meu caso, chegou uma altura
em que fiquei solitário nessa caminhada, não no sentido de apoio, mas sim, no
sentido de que sou único que acredita na minha pessoa. De facto, há momentos em
que ficamos super felizes, mas também há momentos que questionas qual é o
sentido de tanto sacrifício.
OD:
Será que o racismo não foi um dos obstáculos na sua carreira até hoje?
IS: Eu
nunca o vejo como obstáculo, muito pelo contrário, vejo-o sempre como uma
motivação extra. Porque tenho perfeita noção de que estou num país estrangeiro
e tenho a perfeita noção que sou guineense, por mais gratidão que sinto por
Portugal, sou culturalmente africano. Não me iludi de pensar que sou mais do
que guineense. Tenho noção das minhas raízes.
Na realidade, se não
perdermos essa noção, teremos de usar a cor de pele ou qualquer outra forma de
racismo como um factor de motivação.
Não vou negar que não exista
situações de racismo em Portugal ou na Europa em geral, todos fomos alvo dessas
situações pelo menos uma vez. Por exemplo, se marcares um golo o
adversário tratam-te de preto ou macaco, só para te irritar. Por vezes,
custa acreditar que foi a mesma pessoa que te cumprimentou momentos atrás, no
início da partida. Mas eu não uso esse factor como desculpas para os meus
fracassos.
OD:
Como reagiu ao seu primeiro convite para representar a Selecção Nacional?
IS:
Recebi a convocatória com muita alegria e até pulei de alegria por essa
ocasião. Eu estava sozinho no quarto quando me comunicaram que fora convocado
para representar a selecção e pulei de alegria. A minha primeira
internacionalização foi num jogo amigável contra Guiné-Equatorial, a qual
vencemos por 4-0, em Belém.
Lembro-me que quando estive
na terceira divisão pela União de Madeira, quando acompanhava as convocatórias
da selecção, dizia a mim mesmo que podia estar ali, pois estávamos no mesmo
nível. Mas não sei porquê nunca era convocado. Acabei por perceber que era a
opção do treinador, ou devido a falta de conhecimento dos jogadores pelos
dirigentes. Como sabes, não temos uma grande organização ao ponto de ter
conhecimento da evolução dos atletas guineense que militam no estrangeiro,
independentemente da divisão. Portanto não tinha grandes espectativas de um dia
ser convocado. Mas quando surgiu a oportunidade, fiquei super feliz, mas também
fui realista comigo mesmo. Porque sei que sou a mesma pessoa que no ano
anterior estava na terceira divisão a jogar bem, sou a mesma pessoa que no ano
seguinte está a fazer a pré-época no Nacional e assinou um contrato
profissional.
OD:
Qual é a sua avaliação em relação ao aspecto organizativo da Selecção Nacional?
IS:
Inicialmente, eu pensava que era falta de vontade, chegou uma fase em que
pensei que, se calhar, era falta de capacidade, mas agora cheguei a uma fase em
que não sei explicar de concreto. Porque é estranho. A organização de uma
viagem não é dos aspectos que preocupa uma equipa de terceira divisão ou de
distritais, se quer em Portugal.
Repare, temos
potencialidades, mas o aspecto organizativo, às vezes constituem o entrave.
Contudo, está a melhorar, por exemplo nesta ultima, frente a Congo, a
organização foi muito boa. Perdemos pelos nossos próprios erros. Temos que ver
pelos nossos erros e melhorar esses aspectos. Frente a Zâmbia tivemos problemas
na viagem mas o estágio foi perfeito. Acho que com tempo tudo vai mudar.
OD:
Sempre fala-se dos muitos jogadores guineenses em Portugal. Na sua visão qual é
a real situação desses talentos?
IS:
Temos muitos talentos em Portugal, com grandes qualidades e potencialidades,
mas acho que há um problema estruturante desde a porta da chegada, a
mentalização, o suporte que os leva daqui para lá, acompanhamento por parte dos
empresários e das autoridades e até acompanhamento mediático.
O meu pai disse-me um dia:
se te disserem que és “mal-educado” não te insultaram a ti mesmo, mas aos seus
pais. Portanto se disserem que os jogadores guineenses gostam da noitadas, não
se esforçam, trabalham pouco, na verdade não só estão a falar mal de si, mas
também do seu país e dos que vieram depois de si. Repare, tudo isso é questão
de mentalização. Portanto, a verdade indiscutível é que temos talentos, não só
em Portugal como em outras partes da Europa.
Se adicionarmos uma boa
organização aos talentos que temos e lhes incutirmos a mentalidade positiva,
veremos que temos todas as condições para termos uma selecção respeitável, com
participações constantes nas grandes competições africanas.
Como disse no início,
trata-se da mentalidade. Vejamos, os jogadores de Costa de Marfim por exemplo,
sentem-se orgulhosos em representar a sua selecção e o fazem com vontade. Mas
nós dizemos que não vamos representar a nossa selecção ainda, porque temos
esperanças de poder jogar na selecção portuguesa, e só decidem vir quando essas
esperanças defraudadas.
Por exemplo, o Zezinho desde
sempre representou a selecção nacional. Nunca colocou uma equação se quer e o
faz com todo orgulho e vontade. Isso é uma questão da mentalidade, acho que é
de jogadores assim que precisamos, aqueles que têm a mentalidade da Nação e que
sintam orgulho de representar as cores nacionais. Não vejo nenhum mal em
representar o meu país e ajudá-lo a ser grande, se puder ser grande lá fora, no
futebol.
OD:
Será que nunca se arrependeu de ter optado por representar a Selecção Nacional?
IS:
Nunca me arrependi dessa decisão, aliás foi uma decisão muito importante para
mim. Tomei-a com todo orgulho. Apesar da toda desorganização que assistimos ao
longo dos tempos, nunca senti-me desmotivado e estou sempre disponível para
vir, sempre que for convocado. Comuniquei aos dirigentes do meu clube a
minha intensão de vir sempre que for solicitado, mesmo para os jogos amigáveis.
Portanto, nunca arrependi-me de ter tomado a decisão de representar a Selecção
Nacional da Guiné-Bissau. Sempre é muito especial, vir para o seu país e ver
que podes fazer algo para ajudar.
Para mim o desafio motivador
durante a minha estadia na selecção é, portanto, conseguir grandes resultados,
ter uma selecção que consegue encarar o adversário sem medo.
De referir que o
internacional guineense Ibraima Só, de 27 anos, teve sete internacionalizações
pela selecção principal da Guiné-Bissau e actualmente está ao serviço do
Famalicão, da segunda liga portuguesa. É médio defensivo e este ano jogou todos
os oito jogos da sua equipa somando 627 minutos. Conquistando três
vitórias, cinco empates e zero derrotas.
Fonte:
O Democrata / ogologb@gmail.com
1 comentários:
Acredito que este homem será o futuro do sucesso do nosso país... Ele sim honrará o nosso povo por aquilo que é.
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